24 outubro 2010

POR QUE É QUE A BRIOSA É BRIOSA? (Parte II)

    Corria o ano da graça de 1885. A organização associativa da Academia, reunida em torno da Academia Dramática e do Clube Académico de Coimbra, encontra-se ainda em fase embrionária. As Assembleias Gerais têm lugar no Teatro Académico, situado no Colégio Real de S. Paulo Apóstolo, edifício que viria a ser, em 1887, a primeira sede da Associação Académica de Coimbra (ver Nota 1 no final).
    A luta política, que haveria de culminar na implantação da República 25 anos mais tarde, marca já presença na Universidade. A facção mais aristocrata e conservadora da Academia distingue-se pelos hábitos requintados. Veste-se à futrica depois das aulas, fuma charuto, usa guarda-chuva, calça luvas e polainas. São os polainudos que, no dizer de Trindade Coelho, fazem da polaina um chique e acho que uma fidalguia. Isolam-se no Café Lusitano, em tertúlias intelectuais que entram pela noite adentro, enquanto os tesos vão mergulhar nas sebentas, que a mesada é fraca e um chumbo custa caro à família.
    Estávamos nisto quando morre em Lisboa D. Fernando, viúvo de D. Maria II. Enquanto a maioria da malta se prepara para gozar em Coimbra os três dias de feriado da ordem, três polainudos, lisboetas de gema, avançam para a capital dispostos a matar saudades e a representar a Academia de Coimbra nos funerais do Rei.
    António Cabral, figura de proa dos polainudos, conta que os colegas foram mandatados para tal em Assembleia Geral, mas Trindade Coelho acha que esta não foi mais que uma combinação através de papelinhos passados nas aulas entre um grupo de apaniguados. E que apaniguados! Fosse a questão passada com outros, talvez a bronca não surgisse. Mas aqueles três pertenciam à fina-flor dos polainudos, grupo que uma boa parte da Academia quase odiava.
    Mal o assunto é conhecido, logo um aviso aparece nas portas do Clube Académico, chamando a Academia, ofendida nos seus brios, a uma Assembleia Geral, com o fim de protestar contra os usurpadores. É a resposta dos revolucionários vermelhaços. Mas a Assembleia não chega a consumar-se. É boicotada pelo Cabral e seus apaniguados, que começam por esconder a chaves do Teatro Académico, fazem obstrução à constituição da mesa, avançam às tantas com o Saraiva das Forças, que a todos ameaça de partir os ossos, e acabam por cortar o gás, deixando o Teatro às escuras.
    Os revolucionários não se dão por vencidos e convocam uma reunião à porta fechada para um teatro na Rua da Trindade, onde se propõem estudar e discutir os meios de levantar o nível moral da academia. Então, sim! Libertos dos Cabrais, saem discursos inflamados contra aqueles que, tendo ido para Lisboa sem mandato para tal, haviam posto em cheque o brio da Academia. E a questão descamba para a falta de nível dos polainudos. Havia que levantar o nível da Academia.
    A partir de então, a questão do brio ofendido e a questão do nível ou da falta dele postaram-se no centro das inflamadas discussões académicas e da chacota entre os grupos antagónicos. Definitivamente, os dados estavam lançados. Dum lado, os polainudos. Do outro lado, os do brio ofendido, ou seja, os briosos.
    Os polainudos não gostaram do enxovalho na Trindade e, passado pouco tempo, distribuíam uma folha litografada que, vendida à Porta Férrea por um vintém, se esfumou como rastilho de pólvora. Era uma rábula à moda dos Lusíadas, A Niveleida, composta numa aula de Direito Eclesiástico pelo Cabral. Nove verrinosas mas bem-humoradas estrofes, em que a facção contrária é apelidada de briosa e os seus cabecilhas, os do nível, são zurzidos um a um sem dó nem piedade. E a palavra briosa lá aparece, escarrapachada nas estrofes I, III e V, sendo, porventura, a primeira vez que tal palavra foi escrita para designar uma parte da Academia.
    Transcrevo abaixo a terceira estrofe, esclarecendo que os R R se referem às reprovações. Por esta pequena amostra se vê o desprezo com que polainudos mimaram os briosos:
                    Estavas, ó briosa, em bom sossego,
                    Da sebenta colhendo o doce fruito,
                    Naquele estado tolo, bruto e cego,
                    Que os R R não deixam durar muito;
                    Nesta imunda princesa do Mondego
                    Que vai agora d’águas pouco enxuito,
                    Ensinado às sopeiras e serventes

                    O que tinhas aprendido co’os teus lentes.
    O estrondo que A Niveleida fez na Academia foi tremendo. Para além da distribuição do poema, as casas onde residiam os cabecilhas dos revoltosos eram assediadas durante a noite com gritos de onde está o nível?, onde está a bolha? e as suas paredes brancas apareciam, no dia seguinte, com desenhos dum nível de bolha de ar feitos a traço grosso de carvão. O achincalhamento teria deitado abaixo o moral a qualquer um. Mas a Briosa não é qualquer um. A Briosa foi desde sempre combativa, de antes quebrar que torcer.
    Para além de cenas de murro seco naquelas ruas empinadas da velha Coimbra, a resposta à letra apareceu dias depois, noutro poema à maneira dos Lusíadas intitulado A Bolha, onde os cabecilhas dos polainudos eram, agora eles, arrasados um a um.
    Mas a grande resposta apareceria dois anos mais tarde, ao alterarem-se os estatutos da Academia Dramática para dar lugar à Associação Académica de Coimbra, a qual passaria a agregar cada vez mais estudantes, enquanto os polainudos se isolariam no Instituto de Coimbra, o tal clube elitista conhecido por Clube dos Lentes, cujas instalações viriam a ser tomadas de assalto em 1920 (Tomada da Bastilha), para desafogo da sede provisória da AAC, que continuava à espera da prometida construção de um novo Teatro Académico. Estórias que a História tece...
    E a confirmar que a clivagem na Academia era não apenas socio-económica (como escreveu Norton de Matos nas suas memórias) mas também política, anote-se que António Cabral, um dos líderes dos polainudos, viria a ser ministro da Monarquia, enquanto que António Luís Gomes, o grande obreiro da criação da AAC e seu primeiro Presidente, viria a ser ministro do Governo Provisório da I República e Reitor da Universidade de Coimbra.
    Não resisto a abrir aqui um parêntesis para citar o que, a respeito destas questões do nível, conclui Norton de Matos: A minoria fidalga estava então convencida que tinha levado a maioria da Academia a submeter-se-lhe, quando era exactamente o contrário que se dava. O nível ia-se de facto estabelecendo, porque cada vez havia menos ricos, porque as classes médias principiavam a dar maiores mesadas aos filhos, porque estes adquiriam hábitos de vida mais cuidada e, sobretudo, porque na Briosa principiaram a aparecer em grande número inteligências verdadeiramente privilegiadas, rapazes a quem o tempo chegava para estudarem a fundo as matérias dos seus cursos e alargarem os seus conhecimentos com leituras aturadas e com discussões intermináveis nos cafés e nas Repúblicas.
    E é ainda Norton de Matos que refere que, ao sair da Universidade em 1888, já as coisas estavam mais calmas, mas ainda os polainas chamavam aos mais modestos e menos bem trajados, os briosos, Academia Briosa, ou Briosa simplesmente.
    Resta saber como é que o epíteto de Briosa se colou à equipa de futebol da Académica, a qual só viria a ter o seu primeiro jogo oficial em 28 de Janeiro de 1912, quase três décadas passadas sobre estes acontecimentos. Mas isso fica para o terceiro e último post sobre o porquê de a Briosa ser Briosa.
    Zé Veloso
    Nota 1: O Real Colégio de S. Paulo Apóstolo foi demolido por alturas de 1888 para dar lugar a um novo Teatro Académico. Mas a obra nunca saiu dos alicerces, tendo sido construído em seu lugar um edifício destinado à Faculdade de Letras, edifício que, aquando da destruição da velha Alta, foi também ele parcialmente demolido para dar lugar à actual Biblioteca Geral da Universidade.
    Nota 2: O tema PORQUE É QUE A BRIOSA É BRIOSA é tratado em 3 crónicas sequenciais: Parte I, Parte II e Parte III.

17 outubro 2010

POR QUE É QUE A BRIOSA É BRIOSA? (Parte I)

    Quando eu era miúdo ia para o estádio gritar A-cadé-mi-ca!!! A-cadé-mi-ca!!!...
    O epíteto de Briosa já então existia mas não era corrente chamar-se por ele. Esta moda de gritar Brioooooooooooooosa!!!... dum lado ao outro do campo, num estilo que se espalhou como rastilho de pólvora a claques de outros clubes, surgiu apenas nas últimas décadas do nosso historial academista de mais de um século.
    Mas porquê Briosa? E desde quando se colou tal nome à equipa de futebol da Académica, hoje Académica-OAF? Que fundo mistério é esse que não encontro decifrado em livro ou site algum, que nem sequer se questiona, antes se aceitando como se de um dogma se tratasse?
    Foi para responder a estas questões que escrevi este post e mais dois que se lhe seguirão, já que a estória é comprida e cabeluda, remontando a um conflito que dividiu a Academia de Coimbra em 1885, ainda o futebol não tinha chegado à nossa cidade!!!...
    Quem diria? Afinal, a Briosa nem sempre foi a equipa de futebol da Académica!!!... Quem terá sido, então?
    Abro aqui um parêntesis para agradecer ao grande amigo Luís Filipe Colaço (à esquerda na foto) – que comigo e mais cinco fundou Os Álamos e que acompanhou Zeca Afonso na gravação de Contos Velhos Rumos Novos e Traz Outro Amigo Também – a dica fabulosa que me deu: Zé, nas memórias do General Norton de Matos há qualquer coisa sobre a Briosa que te deve interessar…
    Uma vez encontrada uma pista, o resto veio a seguir. Mas nem tudo foram facilidades. E isto porque quem escreveu sobre a nossa antiga Academia o fez em livros de memórias, várias décadas depois dos acontecimentos terem ocorrido, falhando-lhe já precisão nos factos, nas datas e nas pessoas. E, mais do que isso: a história nunca é contada de forma desapaixonada; tem sempre as cores de quem a conta, porque cada um vê as coisas pintadas da cor da sua simpatia.
    Ora, sendo que no caso vertente tudo se passou em clima de enorme efervescência política – estávamos então a 25 anos da implantação da República – tive que “ouvir” as duas partes no conflito, ou seja, os monárquicos e os republicanos!
    Comecemos, então, por ouvir o General Norton de Matos, aquele que no final dos anos 40 disputou as eleições para a Presidência da República contra o candidato de Salazar. Norton de Matos, que frequentou a Universidade de Coimbra em 1884-88, dedica nas suas memórias algumas páginas a este período.
    Conta-nos ele que havia em Coimbra dois tipos distintos de estudantes: o grupo dos ricos, dos bem nascidos, dos que tinham nomes ilustres; e os outros, a maioria, filhos da classe média, alguns de condição modesta, com mesadas que raramente excediam os 15 mil reis. Norton de Matos dava-se com gente de ambos os grupos; por nascimento, estava ligado ao primeiro, mas, por educação e tendência política republicana e socializante, tinha muitos amigos no outro campo. Escreve Norton de Matos, com evidente mágoa, que o grupo aristocrata discriminava os restantes e se isolava na sua sobranceria snobe, de tal forma que os seus membros eram apelidados de polainas, o que, nos dias de hoje, equivalerá a “meninos betinhos”.
    Já António Cabral, um dos líderes dos polainas, ao escrever também as suas memórias, faz a clivagem entre os dois grupos em termos políticos, ao contrário de Norton de Matos, que centra a sua análise na clivagem socio-económica. Para António Cabral, o que havia era um pequeno grupo de republiqueiros, vermelhaços de ideias avançadas, ideólogos e sonhadores, que viam na república a salvação da terra amada, da pátria querida, que eles reputavam em vias de perdição.
    É com base nestas duas fontes e, ainda, no In Illo Tempore de Trindade Coelho – que dá aos polainas a designação mais rebuscada de polainudos – que a estória pode ser reconstituída.
    Fica para o próximo post      
   
    Zé Veloso
   
   Nota: O tema PORQUE É QUE A BRIOSA É BRIOSA é tratado em 3 crónicas sequenciais: ParteI, ParteII e Parte III.