20 dezembro 2010

O 3 PARA OS OLIVAIS

O meu eléctrico era o 3, o melhor de todos! Era lindo, rápido e amarelo. Tão amarelo como os outros, mas mais bonito.
Havia o 3 com traço e o 3 sem traço. Ou o 3 branco e o 3 vermelho, para quem não fosse daltónico. Os dois corriam um contra o outro para se cruzarem, quer em Celas quer no Penedo. Quem chegasse em último era coxo! A viagem custava oito tostões da Baixa à Alta e sete tostões em sentido inverso, numa altura em que um papo-seco (um bico, como então se dizia) custava quatro, um postal dos correios cinco e um selo de carta dez tostões.
O 3 percorria toda a Cumeada, do Botânico até aos Olivais, constituindo os próprios carris  a linha de fronteira entre a Alta e a Baixa, para efeitos do exercício da praxe, o mesmo acontecendo, aliás, no troço que descia dos Olivais até à Cruz de Celas.  
O 3 era um eléctrico perfeito, não fora a falha de não passar pela Universidade. Dir-se-ia que o 3 passava em quase tudo o que era importante naquela Coimbra. Passava na Baixa, no Jardim da Manga, nos Correios, na Praça (Mercado D. Pedro V), no Teatro Avenida, na Associação Académica (só mais tarde construída), na Praça da República, tendo até paragem à porta do Mandarim. O 3 subia do Tropical aos Arcos, acenava ao Jardim dos Patos e ao Botânico, parava no Penedo da Saudade, deixava os putos quase à porta do D. João III, largava o pessoal que ia para a romaria do Espírito Santo e ouvia o bruá dos jogos de basket no campo do Olivais, onde, pelos Santos, a malta se roçava ao som do saxofone do Ilídio Martins.
Mas o 3 também gostava de música. É natural… uns metros abaixo do Café Madeira, a rapaziada da casa em frente do Lar das Doroteias trazia o pickup para a varanda e tocava até à exaustão, para gáudio das universitárias e terror das freiras, One, two, three o'clock, four o'clock, rock!..., o 45 rotações de Bill Haley & His Comets, acabadinho de chegar a Coimbra. E quando, nas noites de Verão, o Luís Goes ensaiava com o seu grupo de fados no alpendre da casa onde vivia, um pouco acima da paragem da “casa verde”, o guarda-freio do 3 avançava em marcha lenta  e deixava um aceno de adeus, como que a pedir desculpa pelo incómodo.
O 3 era um eléctrico feito para se ver o futebol da janela. Corria ao lado da Sereia, deixando espreitar o Santa Cruz por cima do muro ou pela nesga do portão; permitia uma espiada de longe sobre o Calhabé, ao passar lânguido pelo Penedo; e tinha uma paragem de gala no “poisio”, terreno baldio entre o Madeira e a “casa verde”, onde os putos da minha idade rompiam calças atrás da bola horas a fio.
Aliás, o 3 tinha com os putos uma relação especial. Estoirava-nos debaixo das rodas os montinhos de pólvora das bombas de carnaval, imitando o matraquear das metralhadoras – tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá… – e assustando as damas – aiii!!! – que se preparavam para sair na paragem. Mas, melhor do que tudo o mais, o 3 era o campo de treinos dos desportos radicais da malta urbana: saltar do eléctrico em andamento e brincar ao gato e ao rato com o cobrador.
Aquilo é que era adrenalina! Faziam-se apostas, saltava-se com o eléctrico a várias velocidades, a cinco, a seis e, até, a sete! Alguém sabe aqui o que é saltar de um eléctrico lançado a sete, avenida abaixo, entre o Café Madeira e a paragem dos Lóios, ali mesmo nas barbas da sentinela da Guarda Republicana, ainda para mais com o guarda-freio apostado em dar cabo dos joelhos aos putos que faziam a corrida de borla, iludindo o cobrador, escondidos na plataforma de trás ou pendurados ao vento no estribo? Alguém sabe aqui o que isso é?
Como em qualquer desporto, aquele também tinha a sua técnica. A maioria atirava-se para a frente, tentando acompanhar o movimento do monstro de ferro. Mas havia os que saltavam do estribo para o chão com um só pé e amorteciam a energia da queda rodopiando com a perna livre levantada, enquanto uma mão largava o corrimão e a outra segurava a capa esvoaçante. Bonito!
Como em qualquer desporto, uma tal performance não estava ao alcance de todos. Havia os iniciados e havia os craques, mais velhos, mais rodados. Um havia, até, que se dizia que já tinha ido às p… !
Tive o meu baptismo de voo numa manhã de Inverno. Não que estivesse preparado. Até aí limitara-me a fazer uma ou duas corridas no estribo, cosido às paredes do bicho, não fosse o guarda-freio topar-me pelo espelho. Naquele tempo, os eléctricos só eram fechados na zona dos bancos. O guarda-freio rapava um frio dos diabos; e a nós, na plataforma de trás, acontecia-nos o mesmo, enquanto o lorde do cobrador (já nem falo do revisor... – Foge, que ele vem lá! –) se passeava portas adentro, controlando-nos pelo rabo do olho.
Foi numa manhã de Inverno, dizia eu, faltariam dez para as nove. Daí a pouco tocaria a sineta o primeiro toque. O eléctrico vinha a descer a Dias da Silva, rumo ao D. João III. Parou na “casa verde”, de onde eu saía ainda a comer o pão. A partir daí era só uma paragem. A plataforma de trás vinha apinhada de malta do 1.º B: – Sobe, 24, que está quase a tocar e o gajo anda lá dentro entretido. 24 era o meu número! Seria o meu dia de glória...
Salto para o estribo, já o eléctrico embalava a caminho do Madeira. Agarro o corrimão, o pão na boca, a pasta na outra mão, o olho no trica-bilhetes… e a malta a bater palmas. Eis se não quando, ouve-se um grito: – Salta que o gajo vem a correr! E o gajo corria, de facto, atropelando tudo e todos dentro do eléctrico. E o guarda-freio, de conluio, mete a sete: – Agora é que vais pagar, meu grande sacana! E a malta: – Salta, 24, que o gajo apanha-te!
Nem deu para pensar. Larguei-me, simplesmente. Dei de joelhos nos paralelos da calçada – Ai as minhas calças à golfe, quase novas! – mas não me lembro se doeu. Doeu, sim, a malta a rir-se lá de cima, enquanto o trinca-bilhetes lambia os beiços. Pelo chão ficou espalhada a pasta aberta, os cadernos diários, a caixa de madeira onde guardava os lápis e a borracha, um transferidor, um duplo-decímetro e meia folha de “papel Cavalinho”. Nesse dia havia aula de Desenho.
Zé Veloso

3 comentários:

  1. Ricardo Figueiredo23 dezembro, 2010 20:08

    Pois, Veloso, para contrariar os "penduras" do meu tempo-a geração anterior- e, por certo, fruto de uma prolongada maturação engenheiral, os para-choques, em ambos os extremos do elétrico, foram cobertos com uma chapa, como podes verificar na tua foto.Antes, havia lugar , com os pés bem instalados ao longo do para-choques, para uma boa dezena de garotos.
    E o gozo que dava, quando o elétrico patinava, a subir a ladeira do Sta.Cruz ou do Penedo, gritava a malta...Mete areia!!
    A areia era o complemento para a travagem rápida e para a aderência na subida.
    Nunca reparaste numa caixas de madeira, estratégicamente colocadas-em regra onde estavam as guaritas dos agulheiros-para reabastecer os depósitos dos electricos?
    Outra função, fundamental-limpar a via.Os detritos, depositados, prejudicam o andamento.E lá andava o homem, com um artefacto tecnicamente muito evoluido,qual garoto, com uma "gancheta" metida na via, circulando na rede.
    Ah... e o outro, com a galheta do óleo, tratando da caixa das agulhas.
    E a manutenção, muito frequente, do encaixante da via?-Calhau ribeirinho, mais tarde "paralelos",pois a trepidação desajustava o perfil.
    E a instalação das novas vias?Tudo a pulso, mão-de-obra em quantidade. À hora do almoço, o cheiro da sardinha/carapau/chicharro assada,batata com pele e broa, no local, comida à mão e a garrafa do tintol, de boca em boca.
    Sem botas, sem luvas, sem casacos de oleado..
    O que um miúdo pôde observar!
    Abraço

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  2. Não sei se nos conhecemos mas eu vivi perto dessa casa toda a minha juventude. Primeiro na Rua Gomes Freire de 55 a 63 e depois na rua Gil Vicente de 63 a 73, altura em que vim para o Porto. Na Gil Vicente tinha um vizinho que acho que também esteve na república dos LYSOS. Chamávamos-lhe Nani, será possível?
    Tenho lido este blog regularmente. Porque o acho muito interessante e porque fala da minha terra.
    É para continuar...
    Obrigada.

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  3. Viva,Ana Maria,
    De facto vivíamos muito perto, ainda que não sei se em épocas simultâneas. A casa verde era um ícon daquela zona! E calcule que ainda lá está, exactamente como era, ainda pintada de verde...
    Quanto ao Nani… vou investigar, já que a República dos Ly-S.O.S. continua viva e tem todos (ou quase) todos os repúblicos rastreados.
    Um abraço, Zé Veloso

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