Há dias atrás, enquanto percorria o
Facebook, dei com este postal antigo. Observado com cuidado, percebe-se que a
vista não é do Campo do Bolão. Mas poderia muito bem ser, já que contém alguns traços
que lhe são (eram) característicos: o extenso campo pronto a ser lavrado, a
junta de bois que puxa a charrua, o homem que mantém o bico do arado bem fundo
na terra, o miúdo a quem os bois seguem – não sei se por rotina se por respeito
à enorme vara que leva ao ombro – e, lá longe, o recorte de Coimbra no horizonte.
A vista corresponde a uma zona na margem esquerda do Mondego, a montante da
Ponte de Santa Clara. Como disse, não é do Campo do Bolão mas poderia muito bem
ser.
Para quem não tenha passado por Coimbra ou
se tenha já esquecido da sua geografia, o Campo do Bolão é uma planície
absolutamente plana, com algumas centenas de hectares, entalada entre o chamado
Rio Velho – leito natural do antigo Mondego – a Linha do Norte e a estrada que
da Adémia vai até à Cidreira e à Geria. É um campo extremamente fértil, já que
só depois das obras de regularização do Bazófias deixou de ser anualmente
invadido pelas suas águas, às quais se juntavam igualmente as da Vala do Norte,
vindas dos lados do Caramulo.
A memória que dele tenho data dos anos 50,
andava eu no liceu. Na época das aulas, morava em Coimbra com as minhas
irmãs e o meu irmão. Ao final da tarde de sábado, regressávamos a Ançã para
passar o domingo, fosse na carrinha Peugeot 203 de 3 bancos conduzida pelo meu
Pai, fosse na camioneta da carreira José Maria dos Santos & Cª Lda. E o Campo do Bolão ficava, invariavelmente, no nosso caminho.
Em época de cheias, quando a água do Rio
Velho invadia o campo, “ia-se à volta”, pela Adémia, que era, aliás, o trajecto
regular da carreira. Nessas semanas, o campo transformava-se num lago e Ançã
ficava mais longe de Coimbra.
Passadas as chuvas, abria aos automóveis a
estrada entre a Estação Velha e a Cidreira, onde uma velha ponte de madeira,
que não permitia o cruzamento de dois carros, desembocava numa apertada curva.
Nesse pequeno troço, olhávamos para o campo de soslaio, já que a estreiteza do traçado
não permitiam despregar os olhos dos muros que ladeavam a estrada ou de algum carro
que viesse em sentido contrário, como se fôssemos nós a conduzir o automóvel. Mas, no troço
entre a ponte da Cidreira e a Estação Velha, a vista do campo estendia-se até
aos choupos que ladeavam a recta da Adémia e era o tempo de observar a intensa
faina agrícola que ali se desenvolvia.
No campo havia centenas de pequenas leiras
individuais, tomadas de renda para sustento de economias familiares, que se
distinguiam umas das outras pelo avanço dos trabalhos agrícolas, que conferiam
matizes diferentes às cores do terreno. E, enquanto avançávamos lentamente
naquelas estreitas estradas, era possível contar o número de juntas de bois –
idênticas às do postal – que se espalhavam pelo campo, leira a leira, na
corrida contra o tempo que antecede as sementeiras. E com frequência esse
número ultrapassava a centena, o que parece hoje inacreditável.
Mas de quem era, então, esse imenso campo
que contava com centenas de rendeiros? Nessa altura seria já de mais de um
dono, mas no passado não fora assim.
Contava o meu Pai que o campo fora em
tempos de um só senhor, o qual, não tendo herdeiros, o deixou por herança a um
afilhado. Como é sabido, as prendas que era uso dar pela Páscoa aos afilhados
de baptismo chamavam-se "folar", sendo que, na região entre Ançã e
Coimbra, o folar é um bolo que lembra o bolo de Ançã e tem um ou mais ovos
cozidos em cima. Ao pé destes folares tradicionais, que não são mais do que um
simples bolo, bem pode dizer-se que a prenda que o dono daquele campo todo deu
ao afilhado era … um "bolão"!
E meu Pai rematava a história dizendo que
aí residia a origem de tão singular nome – Campo do Bolão.
Como aos 12 anos não desconfiamos daquilo
que nos contam, nunca perguntei ao meu Pai se a história era verdadeira ou se era
lenda.
Hoje, já mais
velhinho, tentei procurar na “net” alguma dica que me reconfortasse acerca da
veracidade da história. Nada encontrei. Mas, curiosamente, apareceu-me um
documento do Arquivo da Universidade de Coimbra, onde se inventariam os bens do
antigo Colégio de S. Bernardo, também conhecido por Colégio do Espírito Santo, o qual, tendo sido fundado em 1550, foi dotado com as rendas do Mosteiro de S. Paulo de
Frades (que anexou). E, por essa via, aparecem várias referências a um campo
(campos ou herdades) do Bolão, nomeadamente a «12 jeiras no campo do Bolão, em
Vila Franca, termo de Montemor-o-Velho» (será, por certo, Vila Franca, lugar da
freguesia de Arazede, concelho de Montemor-o-Velho), e a uma «Carta de venda
que fez Pedro de Bolão a Fernão Pires chantre de Lisboa e fundador do mosteiro
de S. Paulo de hua herdade no Bolão na Era de 1258». O que mostra que a palavra
“Bolão” já no século XIII servia para nomear um campo agrícola, sendo também
utilizada como sobrenome.
Terá o campo do Bolão de Montemor-o-Velho
alguma coisa a ver com o de Coimbra, apesar de se tratar de terrenos distantes
um do outro? Teria a herdade no Bolão (Montemor-o-Velho) esse nome por ter
pertencido a Pedro de Bolão ou tratar-se-ia exactamente do contrário? Teria o Campo
do Bolão (Coimbra) pertencido a alguém de apelido Bolão? Será que a palavra
“bolão” significava, em tempos idos, algo que era aplicável tanto ao campo de
Coimbra como ao de Montemor-o-Velho? Será que nada disto é válido e existe algures uma teoria consistente?
Ou será que eu sou um racionalista inveterado
e só estou a arranjar argumentos para pôr em dúvida uma curiosa e bonita história
que, um belo dia, um pai contou aos seus filhos, enquanto circulavam de
automóvel entre Coimbra e Ançã?
Zé Veloso
P. S.
P. S.
«Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades…»
A Briosa deixou de treinar no Campo de Santa Cruz, para treinar no Campo do
Bolão.
E o campo, que era rico na produção de milho, passou também a produzir
golos!
No dia em que a Briosa volta comparecer, 41 anos depois, numa competição
europeia, faço votos para que volte da República Checa trazendo na bagagem um
bolão (uma vitória) ou, pelo menos, um bolinho (um empate)!
ZV