30 março 2014

“CAPAS NEGRAS”. AS VOLTAS QUE O MUNDO DÁ!

CAPAS NEGRAS foi um filme controverso. Proibida a sua projecção em Coimbra pelo Ministro da Educação, a pedido da academia da cidade, viria a constituir o maior êxito de bilheteira de qualquer filme português do seu tempo. Rejeitado por aquela mesma academia nos anos 40, viria a ser apontado como “modelo de tradição” nos anos 80, aquando da retoma das praxes interrompidas depois da crise de 69.
Nunca tinha prestado atenção ao filme até me ter apercebido que ele está hoje presente em sites ligados à praxe e demais tradições académicas e que é visionado pelos actuais estudantes na procura de “testemunhos autênticos” das antigas tradições. Foi devido a esta constatação que resolvi procurar resposta para duas questões que me pareceu interessante trazer aqui – qual o grau de adesão do filme à realidade da Coimbra académica de 40; e que razões terão levado a academia da época a rejeitar o filme.
Vamos aos factos!
Por alturas de Abril de 1946, conforme viria a contar anos mais tarde Mário Trêpa (1), o produtor e realizador cinematográfico Armando Miranda chega uma bela noite à República do Rás-Teparta pela mão de Carminé Nobre, autor do célebre livro “Coimbra de Capa e Batina”. Explica que pretende «filmar uma história de figurino romântico, passada em Coimbra, tendo como esquema central a vida académica no seio de uma República Coimbrã»; revela quais serão os principais actores da fita, à cabeça dos quais Amália Rodrigues e Alberto Ribeiro; refere que «também os componentes da República e eventualmente mais alguns estudantes tomariam parte na cena do adeus a Coimbra»; e pede para que a Rás-Teparta seja palco da acção. Conta Mário Trêpa, que à época era o Rás-Mor, que «depois de algumas ponderações, decidiu-se aceder ao pedido formulado, com a condição de manifestarmos a nossa opinião na apreciação das cenas a apresentar».
As filmagens começaram pouco depois, incluindo cenas rodadas no interior da República e em exteriores da cidade, e uma reportagem sobre o cortejo da queima daquele ano, realizado a 27 de Maio. Há igualmente cenas filmadas na cidade do Porto, onde decorre a última parte do filme.
Conclui-se da leitura dos jornais da época que as filmagens decorriam ainda depois da Queima, em plena época de exames. Porém, nem tudo iria bem, já que António José Soares (2) alerta para o facto de que, em Julho desse mesmo ano, «começaram a aparecer sinais de desconfiança acerca da fita que Armando Miranda estava a filmar sobre a vida académica de Coimbra e algumas pessoas da cidade vieram afirmar, publicamente, que não intervieram na sua realização».
A confirmar este facto, o Diário de Coimbra (DC) de 22 de Julho noticia: «Ao contrário do que foi anunciado nos jornais, informa-nos o jornalista Carminé Nobre, de que não tem qualquer interferência no filme “Capas negras”, de Armando Miranda. Este nosso camarada, simplesmente, se limitou, a pedido dum amigo residente em Lisboa, a apresentar aquele realizador a algumas entidades desta cidade.»
Passa-se o tempo e, um mês antes da estreia do filme, outro sinal de mal-estar aparece na imprensa coimbrã: num artigo do DC de 20/04/1947, com um título bem provocador – “Amália, porque não cantas o fado de Coimbra? – é dito que Alberto Ribeiro a cantar o fado de Coimbra «não se pode ouvir, tão mal o canta…»
Finalmente, em 19/05/1947, nas vésperas do início da Queima, o DC anuncia a estreia do filme para as 21:45 desse dia no Cinema Tivoli, «com a assistência das Ex.mas Entidades Oficiais». Amália é a cabeça de cartaz, com direito a foto. Anuncia-se uma "Soirée Elegante"...
Mas a estreia foi um fiasco! António José Soares (2) refere «como era de calcular, a estreia da fita “Capas Negras” produziu grandes manifestações de protesto no Cinema Tivoli e, também, nos cafés e jornais». Mas Mário Trêpa (1) é mais detalhado: «Infelizmente, Armando Miranda não cumpriu a sua promessa e não cuidou de saber da nossa opinião sobre a qualidade das cenas a apresentar. Tal procedimento, como seria fácil de prever, resultou num verdadeiro desastre na sua estreia em Coimbra, no Cinema Tivoli. Foi uma pateada memorável».
Dois dias depois, a crónica de cinema do DC, não só racha o filme de alto a baixo como termina com a opinião de que «não deve a academia de Coimbra consentir pelo menos sem o seu protesto que tal filme continue a exibir-se e sobretudo que ultrapasse as nossas fronteiras, pois que falseia e amesquinha a verdade».
No dia seguinte, o mesmo DC publica uma carta do estudante de Medicina João Belarmino Soares da Mota, o qual, a terminar, endereça «uma boa parte das pateadas do Tivoli» aos colaboradores (estudantes) de Armando Miranda, que apelida de ignorantes e de «“técnicos” da praxe».
Passado um dia, a R. R. Rás-Teparta defende-se dos ataques de que é alvo, através de uma carta publicada no DC. Nesta missiva a República afirma a sua boa-fé na colaboração que deu ao filme, sente o maior desgosto por tudo ter sido mal interpretado, afirma que o estudante da Rás-Teparta não têm as características psicológicas nem a degradação de carácter com que o filme apresenta o estudante de Coimbra, e aproveita para informar que «sob o pretexto de hipotéticos efeitos de ordem técnica, os interiores da nossa República apresentam-se modificados de maneira irreconhecível, em nada correspondendo à verdade».
Por estes dias, a Direcção da AAC envia ao ministro da Educação Nacional uma carta onde, «exprimindo o sentir da Academia, solicita que seja proibida, como se impõe, a exibição do filme “Capas Negras”, tal como se apresenta, em todo o País, Colónias e Estrangeiro».  Entre outros argumentos, a AAC considera que o filme é «atentatório da dignidade, brio e reputação da Academia de Coimbra, trazendo para ela a repulsa de todos quantos, desconhecedores do ambiente coimbrão, possam ver o filme em Portugal e sobretudo no estrangeiro»; e que é «prejudicial à Universidade de Coimbra, por poder levar ao afastamento de futuros alunos pela falsa visão dada da vida académica».
Dia 27, dia do cortejo da Queima, a primeira página do DC noticia que «o sr. Ministro da Educação Nacional, proibiu a exibição do filme “Capas Negras” que ontem saiu das telas de vários cinemas». E, nessa noite, o Tivoli passou a exibir um filme de Humphrey Bogart…
Na sequência destes eventos, aparecem na imprensa mais artigos de opinião contra o filme, cuja ferocidade facilmente se depreende pelos títulos – «O Filme negro da Academia»(3) e  «O Escândalo de Capas Negras» (4).
Entretanto, em Junho, há notícia de que o filme enchia salas no Porto e em Lisboa. Mas a Coimbra só voltaria em Setembro, providencialmente… num mês de férias.
Armando Miranda, definitivamente queimado em Coimbra mas ciente do filão comercial que a vida académica poderia proporcionar, ainda tentou repetir a façanha em 1949, com a fita “Hilário”. Porém, «a novidade foi acolhida nos meios estudantis como se tratasse de mais um negócio daquele cineasta à custa das tradições e vultos académicos» (2) e a ideia abortou depois de vários organismos académicos, incluindo o T.E.U.C., se terem mostrado contrários à realização da fita.
Mas o mundo dá muita volta! E 33 anos mais tarde, mais precisamente a 21 de Janeiro de 1980, “Capas Negras” seria novamente exibido em Coimbra mas, agora, com aplausos em lugar da pateada! E não no pequeno Tivoli mas no Teatro Académico de Gil Vicente e com a bênção da Direcção Geral da AAC! Foi durante a Semana de Recepção ao Caloiro (uma novidade na praxe coimbrã), à guisa de demonstração de como eram as praxes interrompidas onze anos antes. Como escreveu António Manuel Nunes (5), «o filme era recuperado como "documento histórico", apto a ensinar aos estudantes as tradições perdidas».
– Volta, Armando, que estás perdoado!
Feita a cronologia dos factos, falta encontrar resposta para as duas perguntas a que me propus responder – qual o grau de adesão do filme à realidade da Coimbra académica de 40; e que razões, em concreto, terão levado a academia da época a rejeitar o filme.
Fica para o próximo post  “CAPAS NEGRAS”. UM RETRATO DESFOCADO DA REALIDADE – que isto hoje já vai longo.
Zé Veloso
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(1) Mário V. Trêpa, “Crónica dos Descobrimentos da Real República Rás-Teparta”, edição do autor, Santo Tirso, 2004.
(2) António José Soares, “Saudade de Coimbra”, Almedina.
(3) Semanário “Sempre Fixe”, rubrica “Arrufadas de Coimbra” de 29/5/1947
(4) “Via Latina” de 10/6/1947
(5) AMNunes, “Coimbra é uma lição” in “Guitarra de Coimbra (Parte I)”, http://guitarradecoimbra.blogspot.pt/2006/08/coimbra-uma-lio-rainha-incontestada-

17 março 2014

IN ILLO TEMPORE – SEMPRE JOVEM, 112 ANOS DEPOIS!

In illo Tempore – no seu título original, In illo Tempore. Estudantes, Lentes e Futricas – é, porventura, o mais reeditado e mais lido livro de memórias de um estudante de Coimbra. A primeira edição, da Livraria Aillaud & C.ia Paris-Lisboa, data de 1902 e é listrada com fotografias várias de desenhos de António Augusto Gonçalves
O seu autor, José Francisco Trindade Coelho, nasceu a 18 de Junho de 1861 no Mogadouro e frequentou a Faculdade de Direito da U. C. de 1880 a 1885. Naquele tempo, Trindade Coelho estudou praticamente à sua custa, já que o pai lhe cortou a mesada depois de um chumbo logo no 1.º ano. Para tanto, foi “sebenteiro”, deu explicações e trabalhou como jornalista.
O seu livro revela um apurado sentido de humor e uma extrema jovialidade, que não seriam de esperar na personalidade de alguém que teve de estudar a pulso e cuja vida profissional viria a ser bastante complicada. Dá ideia que, enquanto escreve as suas memórias, Trindade Coelho se vinga e liberta das injustiças de uma vida na qual já não se sentia bem e que cedo decidiria abandonar, suicidando-se em Lisboa, a 9 de Agosto de 1908, ou seja, 6 anos apenas depois de ter feito sair um dos livros mais bem-dispostos que me foi dado ler!
In illo Tempore foi ao longo de todo o último século um best-seller e é, ainda hoje, de leitura obrigatória para quem queira conhecer a vida académica de Coimbra dos finais do séc. XIX (e, até mesmo, do rodar para o séc. XX, já que Trindade Coelho nos relata também alguns factos ocorridos entre a sua saída da Universidade e a edição do livro).
Ali se evocam episódios da vida académica, das aulas, dos exames, das estúrdias, da praxe, das lutas políticas de então, da vida citadina, da vida universitária, dos estudantes, dos lentes, dos futricas, das tricanas, das brigas, dos amores e desamores, cuja leitura nos conduz até à maneira de viver da Academia, aos seus costumes, aos seus tiques e às suas gentes.
Ali se reproduz uma profusão de poemas e prosas satíricas, entre os quais A Niveleida – onde os “polainudos” arrasam a “briosa” – e o poema de resposta dos “briosos” aos “polainudos” – A Bolha – numa época em que a bola de futebol ainda não tinha chegado a Portugal mas onde em Coimbra já havia uma “Briosa”.
Ali, em cerca de 30 capítulos, de meia dúzia de páginas cada, se passam em revista temas como a Festa das Latas, o Saraiva das Forças, o Orfeon Académico, a vida nas Repúblicas, os cafés da Alta, o Centenário da Sebenta, as fogueiras de S. João, a cabra, as récitas dos quintanistas, tudo nos sendo contado em jeito de estória à hora do café, com graça, espírito crítico, algum veneno e bastante detalhe.
Para "cheirarmos" um pouco o estilo de escrita de Trindade Coelho, aqui fica uma passagem deliciosa do capítulo “ASebenta”:
«No tempo em que eu andava em Coimbra, ainda a boa e imortal sebenta reinava em todo o seu esplendor! Eu nem fazia sequer ideia, ao chegar a Coimbra, do que vinha a ser isso da sebenta; mas, industriado logo a tal respeito, vim a saber que era uma espécie de folhinha litografada, formato 8.º, que saía todos os dias compendiando a explicação do lente; que se chamava “sebenteiro” ao que a redigia; que custava sete tostões por mês cada uma; que eram três em cada ano, visto as cadeiras em cada ano serem três; e, finalmente, que, enquanto o lente explicava a lição para o dia seguinte, só o sebenteiro ouvia o lente, e que os mais, todos, e eu portanto, podiam muito bem ler o seu romance, fazer o seu bilhetinho e passá-lo ou comentar os que vinham dos outros – ou então, se preferíssemos, dormir ou fazer versos!
Não havia nada de melhor! Além disso, algumas metiam também as suas piadas; outras davam caricaturas – e sebenteiro havia que amenizava por tal forma aquela estopada, que até dava versos para o fado no fim de semana, e convocava os discípulos, em anúncios, para trupes aos caloiros, ou outras pândegas!»
Dada a sua avançada idade, In illo Tempore é hoje facilmente consultável na internet, podendo ser lido a custo zero. Mas, para mim, a obra vale bem o esforço de aquisição de um volume que ainda exista pelos alfarrabistas, se uma nova edição não aparecer, entretanto, no mercado.
Boa leitura… ou releitura!
Zé Veloso

02 março 2014

A VIOLÊNCIA NA PRAXE

Está quase a fazer dois anos que esta foto apareceu no diário As Beiras online, a propósito de uma notícia relacionada com abusos da praxe em Coimbra. A foto diz tudo: a prepotência sobre o mais fraco e indefeso, a posição humilhante e degradante das caloiras, a presença sádica das praxistas de turno e, para que o quadro fique mais impressivo, a constatação de que a máxima o homem é o inimigo do homem resulta ainda mais chocante quando conjugada no feminino.
Por essa altura, entendendo eu que as praxes devem ser reguladas exclusivamente pelos estudantes, escrevi no Penedo d@ Saudade – TERTÚLIA: se os actuais estudantes universitários se não empenharem fortemente no reverter desta situação, alguém o irá fazer por eles. O tempo correu e, na sexta-feira passada, sob pressão da reacção da opinião pública aos acontecimentos do Meco, a Assembleia da República aprovou por unanimidade uma resolução contendo um conjunto de medidas visando acabar com as praxes violentas e abusivas, bem como com práticas degradantes e atentatórias da dignidade humana ligadas a essas mesmas praxes. E os estudantes deixaram passar uma bela oportunidade para afirmarem a sua tão apregoada responsabilidade e a sua tão desejada autonomia. Pior, viraram contra si o país!
Como foi possível chegar até este ponto?
Na minha Coimbra de 50 e de 60, a praxe estava profundamente enraizada na cidade, uma cidade pequena e fechada, onde ao longo de mais de quatro séculos as suas duas sociedades – a futrica e a académica – se tinham sabido acomodar uma à outra, numa relação de dependência recíproca que, pese embora as inúmeras escaramuças de percurso, fazia com que a cidade se revisse na sua academia e a academia se revisse na sua cidade.
Como bem explica António Rodrigues Lopes [1], a sociedade académica estruturava-se então – pelo menos, já desde o séc. XIX – de acordo com os cânones de uma sociedade tradicional, com um projecto socio-político, personalizado, isto é, dotado de identidade bem definida, não lhe faltando sequer os instrumentos para exercitar ou articular a sua sociedade política tendo por suporte uma classe hierárquica estruturada apenas em função do grau académico e não do nascimento ou do acaso.
Essa sociedade tinha, no meu tempo, um universo social (estudantes universitários, dos liceus e dos colégios particulares), um território de vigência (a cidade de Coimbra), um núcleo territorial de dominação (a Alta), santuários onde nem a polícia ousava entrar (da Porta Férrea para dentro e as Repúblicas) e uma lei – a Praxe – uma praxis consuetudinária, passada (e alterada) de geração a geração, cujo primeiro código digno desse nome surgiu apenas em 1957 mas era, dez anos mais tarde, à data da minha saída de Coimbra, totalmente desconhecido da larga maioria dos seus estudantes, entre os quais eu me incluía. Porque a força da praxe não estava no Código mas sim na tradição, que tal código se limitou a decantar e registar.
Mas a dita sociedade tradicional tinha também os seus meios de policiamento para que a sua lei – a praxe – fosse cumprida (as trupes e as revistas por parte dos mais graduados ), os seus tribunais (funcionavam nas Repúblicas), os seus órgãos de recurso e de interpretação da lei (o Conselho de Veteranos), o seu promulgador dos decretos, espécie de Presidente da República (o Dux Veteranorum), e o seu órgão máximo de decisão (as Assembleias Magnas), a quem cabia decidir nas grandes matérias, nomeadamente greves escolares e luto académico.
Analisando as coisas por outro prisma, pode dizer-se que havia, em simultâneo, vários poderes e realidades que contribuíam, cada um a seu modo, para a continuidade, a criatividade, a afirmação e o bem-estar da sociedade académica:
  • desde logo, a hierarquia individual dos seus membros perante a praxe, a qual reflectia a progressão académica dentro do curso, ou seja, a hierarquia do mérito;
  • os veteranos e o seu conselho, reflectindo o peso da antiguidade, o saber dos velhos, o “conselho dos anciãos”, essenciais a uma sociedade cuja lei foi não-escrita durante séculos;
  • a Associação Académica de Coimbra, reflectindo o poder eleito pelos estudantes, desde 1887;
  • as Repúblicas (e o Conselho de Repúblicas), as mais fiéis guardiãs do espírito da praxe (para além do exercício da autogestão e da iniciação política), já que a sua existência e a sua memória se mantinham vivas para além da passagem efémera de cada repúblico por Coimbra;
  • os organismos como a Tuna, o Orfeon, o TEUC e tantos outros que, nas suas digressões, levavam a chama da Academia de Coimbra aos quatro cantos do mundo;
  • as secções culturais e desportivas da AAC, onde era possível exercitar o espírito e o corpo;
  • a Sociedade Filantrópico-Académica, que teve um papel determinante no apoio aos estudantes mais carenciados no séc. XIX;
  • a Briosa – equipa de futebol da AAC – elemento agregador, uma causa domingo a domingo renovada, que ainda hoje "guarda para si" a denominação pela qual a Academia de Coimbra era conhecida muito antes ainda de haver futebol;
  • as festas académicas, com a sua "liturgia", à cabeça das quais a Queima das Fitas, onde (quase) todos subiam um escalão na hierarquia da praxe;
  • os antigos estudantes espalhados pelo país e pelo mundo, quer pelo testemunho individual, alguns através da escrita das suas memórias, quer através das costumadas visitas de curso por alturas da Queima quer, ainda, pela militância das várias Associações de Antigos Estudantes de Coimbra.
Costuma dizer-se que a história nunca se repete. E é fácil de compreender que – depois de a praxe ter sido suspensa em 1969 e retomada duas a três gerações de estudantes mais tarde, já em pleno período democrático pós-revolucionário e com alterações profundas na sociedade – seria impossível que renascesse nos mesmos moldes e que não se sentisse, até, órfã de referências importantes e fora de contexto, como uma flor guardada em estufa que perdeu de vista o seu jardim.
Mas as praxes (que não a praxe, que essa não se transplanta) pegaram de estaca, até noutras paragens, mesmo em sítios cuja terra não estava preparada para as acolher. Terá começado com as Queimas – festa rija é sempre de apoiar! – e com o uso da capa e batina, e vá de estender-se ao que em Coimbra estava já só em lume brando nos anos 60: a relação de poder dos doutores para com os caloiros, o “praxar”. À falta de tradições ou querendo ir, até, para além delas (onde é que eu já ouvi isto?), vá de escarafunchar no Palito Métrico e de imitar as praxes violentas de há séculos atrás, vá de procurar no YouTube a ver se ainda se podia ir mais fundo,… e o resto está à vista de todos e acabou por contaminar também Coimbra, o sítio onde até teria sido fácil resistir aos exageros que se tornaram virais!
Voltando à sociedade tradicional académica que vigorou até 1969, ela vivia, no meu tempo, em perfeito equilíbrio com a sociedade futrica, a qual contemporizava com os seus excessos (que sempre existiram) e compreendia a sua bizarria. Mas tal equilíbrio só foi possível, porque a praxe evoluiu ao longo dos séculos sempre no sentido civilizacional ou seja, acompanhando o evoluir da sociedade. Assim, as praxes bárbaras que nos são descritas no Palito Métrico de meados do séc. XVIII foram-se humanizando ao longo de todo o século XIX e, nomeadamente, depois da República (1910) e do interregno praxístico de uma década que se lhe seguiu. Como exemplos simbólicos desta evolução, lembro que o selvático Canelão é abolido no final do séc. XIX, restando dele os pontapés-da-praxe com que a equipa de futebol da Briosa passou a bridar os recém-chegados ao team; e lembro ainda que a mais violenta das insígnias da praxe – a moca – desapareceu por completo das mãos dos estudantes, determinando o Código da Praxe de 1957 que, em contexto de trupe, a moca possa ser «substituída por um pau de fósforo com a cabeça por queimar»
Quem for hoje ler o Código de 1957 de forma literal, sem qualquer contextualização na academia coimbrã de então e sem entender os simbolismos que estavam em jogo, verá ali horrores, como seja o bicho e o caloiro serem considerados animais, estando, até, o caloiro situado 2 furos abaixo de cão! Pois devo aqui dizer que, se assim era, os animais do meu tempo eram bem mais respeitados do que os de hoje, pois nunca na minha Coimbra vi caloiros postos de quatro, postura de humilhação efectiva – e não apenas figurada - que é hoje entendida nos meios académicos que discutem estas coisas na internet como perfeitamente normal para um caloiro, entendendo-se, apenas, como anormal e ofensiva, a sua aplicação a não-caloiros!
E este simples exemplo ilustra bem que o que está por detrás da violência que as praxes voltaram a ostentar é, também, um retrocesso civilizacional!
E eu, não desculpando, até entendo! É que, se a praxe académica sempre evoluiu no sentido civilizacional, como poderia ela ter evoluído agora no sentido da tolerância, da humanização e da cidadania, numa sociedade onde a violência gratuita é exibida diariamente até à náusea, onde o poder se confunde com pesporrência e se exerce com arrogância, onde os divertimentos mais bacocos e a humilhação consentida fazem parte dos reality shows em  prime time, onde a Casa dos Segredos obtém o máximo das audiências na televisão?
Mas, no entanto, a sociedade moveu-se, agitou-se, sentiu-se mal! O que quer dizer que as praxes foram longe de mais e o equilíbrio tácito se rompeu. E mesmo que as boas intenções legislativas da A. R. não dêem em nada, já nada voltará a ser como dantes, porque a sociedade acordou. Porque mesmo que a sanção legal não surja, haverá a sanção social. A sociedade, uma vez alertada, vai passar a estar atenta.
Resta aos estudantes moverem-se também, sob pena de o equilíbrio se romper mas, agora, em sentido contrário. E a Academia de Coimbra, por nela residir a raiz das tradições académicas, tem especiais responsabilidades no movimento que se impõe. Assim os seus estudantes e as suas lideranças estejam à altura do momento!
Zé Veloso
Nota 1: Esta análise não pretende branquear excessos e deturpações da praxe que também existiam nas décadas de 50 e 60 do séc. XX. Nem ignorar os diversos movimentos de opinião e rebeliões contra a praxe que existiram em diversas épocas, tão ou mais animados do que aqueles a que hoje assistimos.

Nota 2: Para quem iniciou o post afirmando que "as praxes devem ser reguladas exclusivamente pelos estudantes" poderá parecer estranho que o termine com uma exortação aos actuais estudantes e líderes da Academia de Coimbra. Acontece, porém, que a praxe, as tradições académicas de Coimbra, esse imenso património imaterial que é usufruído e gerido pelos actuais estudantes, não é apenas pertença sua. Ele pertence a todos os que em Coimbra estudaram, bem como à Universidade e à própria cidade de Coimbra.
[1] Lopes, António Rodrigues. A Sociedade Tradicional Académica Coimbrã. Introdução ao Estudo Etnoantropológico.Coimbra, 1982.