CAPAS
NEGRAS foi um filme controverso. Proibida a sua projecção em Coimbra pelo Ministro da Educação, a pedido da
academia da cidade, viria a constituir o maior êxito de bilheteira de qualquer
filme português do seu tempo. Rejeitado por aquela mesma academia nos anos 40, viria
a ser apontado como “modelo de tradição” nos anos 80, aquando da retoma das
praxes interrompidas depois da crise de 69.
Nunca
tinha prestado atenção ao filme até me ter apercebido que ele está hoje
presente em sites ligados à praxe e demais tradições académicas e que é
visionado pelos actuais estudantes na procura de “testemunhos autênticos” das antigas
tradições. Foi devido a esta constatação que resolvi procurar resposta para
duas questões que me pareceu interessante trazer aqui – qual o grau de
adesão do filme à realidade da Coimbra académica de 40; e que razões terão levado
a academia da época a rejeitar o filme.
Vamos
aos factos!
Por
alturas de Abril de 1946, conforme viria a contar anos mais tarde Mário Trêpa
(1), o produtor e realizador cinematográfico Armando Miranda chega uma bela noite à
República do Rás-Teparta pela mão de Carminé Nobre, autor do célebre livro “Coimbra
de Capa e Batina”. Explica que pretende «filmar
uma história de figurino romântico, passada em Coimbra, tendo como esquema
central a vida académica no seio de uma República Coimbrã»; revela quais
serão os principais actores da fita, à cabeça dos quais Amália Rodrigues e
Alberto Ribeiro; refere que «também os componentes
da República e eventualmente mais alguns estudantes tomariam parte na cena do
adeus a Coimbra»; e pede para que a Rás-Teparta seja palco da acção. Conta
Mário Trêpa, que à época era o Rás-Mor, que «depois
de algumas ponderações, decidiu-se aceder ao pedido formulado, com a condição
de manifestarmos a nossa opinião na apreciação das cenas a apresentar».
As
filmagens começaram pouco depois, incluindo cenas rodadas no interior da
República e em exteriores da cidade, e uma reportagem sobre o cortejo da queima
daquele ano, realizado a 27 de Maio. Há igualmente cenas filmadas na cidade do
Porto, onde decorre a última parte do filme.
Conclui-se
da leitura dos jornais da época que as filmagens decorriam ainda depois da
Queima, em plena época de exames. Porém, nem tudo iria bem, já que António José
Soares (2) alerta para o facto de que, em Julho desse mesmo ano, «começaram a aparecer sinais de desconfiança
acerca da fita que Armando Miranda estava a filmar sobre a vida académica de
Coimbra e algumas pessoas da cidade vieram afirmar, publicamente, que não
intervieram na sua realização».
A
confirmar este facto, o Diário de Coimbra (DC) de 22 de Julho noticia: «Ao contrário do que foi anunciado nos
jornais, informa-nos o jornalista Carminé Nobre, de que não tem qualquer
interferência no filme “Capas negras”, de Armando Miranda. Este nosso camarada,
simplesmente, se limitou, a pedido dum amigo residente em Lisboa, a apresentar
aquele realizador a algumas entidades desta cidade.»
Passa-se
o tempo e, um mês antes da estreia do filme, outro sinal de mal-estar aparece
na imprensa coimbrã: num artigo do DC de 20/04/1947, com um título bem
provocador – “Amália, porque não cantas o
fado de Coimbra?” – é dito que Alberto Ribeiro a cantar o fado de Coimbra «não se pode ouvir, tão mal o canta…»
Finalmente,
em 19/05/1947, nas vésperas do início da Queima, o DC anuncia a estreia do
filme para as 21:45 desse dia no Cinema Tivoli, «com a assistência das Ex.mas Entidades Oficiais».
Amália é a cabeça de cartaz, com direito a foto. Anuncia-se uma "Soirée Elegante"...
Mas a
estreia foi um fiasco! António José Soares (2) refere «como era de calcular, a estreia da fita “Capas Negras” produziu grandes
manifestações de protesto no Cinema Tivoli e, também, nos cafés e jornais».
Mas Mário Trêpa (1) é mais detalhado: «Infelizmente, Armando Miranda não cumpriu a
sua promessa e não cuidou de saber da nossa opinião sobre a qualidade das cenas
a apresentar. Tal procedimento, como seria fácil de prever, resultou num
verdadeiro desastre na sua estreia em Coimbra, no Cinema Tivoli. Foi uma
pateada memorável».
Dois dias depois, a crónica de cinema do DC, não só racha o
filme de alto a baixo como termina com a opinião de que «não deve a academia de Coimbra consentir pelo menos sem o seu protesto
que tal filme continue a exibir-se e sobretudo que ultrapasse as nossas
fronteiras, pois que falseia e amesquinha a verdade».
No dia seguinte, o mesmo DC publica uma carta do estudante de
Medicina João Belarmino Soares da Mota, o qual, a terminar, endereça «uma boa parte das pateadas do Tivoli» aos
colaboradores (estudantes) de Armando Miranda, que apelida de ignorantes e de «“técnicos” da praxe».
Passado um dia, a R. R. Rás-Teparta defende-se dos ataques de
que é alvo, através de uma carta publicada no DC. Nesta missiva a República afirma
a sua boa-fé na colaboração que deu ao filme, sente o maior desgosto por tudo
ter sido mal interpretado, afirma que o estudante da Rás-Teparta não têm as
características psicológicas nem a degradação de carácter com que o filme
apresenta o estudante de Coimbra, e aproveita para informar que «sob o pretexto de hipotéticos efeitos de
ordem técnica, os interiores da nossa República apresentam-se modificados de
maneira irreconhecível, em nada correspondendo à verdade».
Por estes dias, a Direcção da AAC envia ao ministro da
Educação Nacional uma carta onde, «exprimindo
o sentir da Academia, solicita que seja proibida, como se impõe, a exibição do
filme “Capas Negras”, tal como se apresenta, em todo o País, Colónias e
Estrangeiro». Entre outros
argumentos, a AAC considera que o filme é «atentatório
da dignidade, brio e reputação da Academia de Coimbra, trazendo para ela a
repulsa de todos quantos, desconhecedores do ambiente coimbrão, possam ver o
filme em Portugal e sobretudo no estrangeiro»; e que é «prejudicial à
Universidade de Coimbra, por poder levar ao afastamento de futuros alunos pela
falsa visão dada da vida académica».
Dia 27, dia do cortejo da Queima, a primeira página do DC noticia
que «o sr. Ministro da Educação Nacional, proibiu a
exibição do filme “Capas Negras” que ontem saiu das telas de vários cinemas».
E, nessa noite,
o Tivoli passou a exibir um filme de Humphrey Bogart…
Na
sequência destes eventos, aparecem na imprensa mais artigos de opinião contra o
filme, cuja ferocidade facilmente se depreende pelos títulos – «O Filme negro da Academia»(3) e «O
Escândalo de Capas Negras» (4).
Entretanto,
em Junho, há notícia de que o filme enchia salas no Porto e em Lisboa. Mas a
Coimbra só voltaria em Setembro, providencialmente… num mês de férias.
Armando
Miranda, definitivamente queimado em Coimbra mas ciente do filão comercial que
a vida académica poderia proporcionar, ainda tentou repetir a façanha em 1949,
com a fita “Hilário”. Porém, «a novidade
foi acolhida nos meios estudantis como se tratasse de mais um negócio daquele
cineasta à custa das tradições e vultos académicos» (2) e a ideia abortou
depois de vários organismos académicos, incluindo o T.E.U.C., se terem mostrado
contrários à realização da fita.
Mas o mundo
dá muita volta! E 33 anos mais tarde, mais precisamente a 21 de Janeiro de
1980, “Capas Negras” seria novamente exibido em Coimbra mas, agora, com
aplausos em lugar da pateada! E não no pequeno Tivoli mas no Teatro Académico
de Gil Vicente e com a bênção da Direcção Geral da AAC! Foi durante a Semana de
Recepção ao Caloiro (uma novidade na praxe coimbrã), à guisa de demonstração de
como eram as praxes interrompidas onze anos antes. Como escreveu António Manuel
Nunes (5), «o filme era recuperado como
"documento histórico", apto a ensinar aos estudantes as tradições perdidas».
– Volta, Armando, que estás
perdoado!
Feita a
cronologia dos factos, falta encontrar resposta para as duas perguntas a que me
propus responder – qual o grau de adesão do filme à realidade da Coimbra
académica de 40; e que razões, em concreto, terão levado a academia da época a
rejeitar o filme.
Fica
para o próximo post – “CAPAS NEGRAS”. UM RETRATO DESFOCADO DA
REALIDADE – que isto hoje
já vai longo.
Zé Veloso
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(1) Mário
V. Trêpa, “Crónica dos Descobrimentos da Real República Rás-Teparta”, edição do
autor, Santo Tirso, 2004.
(2) António José Soares, “Saudade de Coimbra”,
Almedina.
(3) Semanário
“Sempre Fixe”, rubrica “Arrufadas de Coimbra” de 29/5/1947
(4) “Via
Latina” de 10/6/1947
(5) AMNunes, “Coimbra é uma
lição” in “Guitarra de Coimbra (Parte I)”, http://guitarradecoimbra.blogspot.pt/2006/08/coimbra-uma-lio-rainha-incontestada-